
Há algumas décadas, pessoas em todo o mundo substituíram as canetas pelos teclados. Primeiro, adotaram as máquinas de escrever, grandonas e geniais. Depois, assumiram os teclados dos computadores e, mais recentemente, chegaram aos celulares, que acabaram abolindo as teclas físicas pelas telas touch screen.
Nesse processo, elas mudaram o método de escrita. O uso do cérebro e dos olhos se manteve; já o uso da mão se transformou totalmente: em vez de envolver o instrumento de escrita e “desenhar” as letras, os dedos passaram a “disparar” suas pontas contra teclas reais e virtuais. Além disso, diante do teclado, a condição de escritor “destro” ou “canhoto” desapareceu, assim como a caligrafia e seu resultado material, o papel escrito à mão.
Em tempos mais recentes, as tecnologias digitais foram colocadas em cheque por educadores de todo o mundo, o que gerou um movimento de proibição dos celulares no ambiente escolar em vários países (inclusive no Brasil).
Esse processo, que mirou elementos como a desatenção, o estresse e a dificuldade nas interações sociais presenciais entre crianças e jovens, trouxe um elemento extra muito bem-vindo: o retorno da escrita à mão com lápis ou caneta, que também passou a ser percebida por outras vantagens. Mas, por que ela é importante? O que dizem as pesquisas mais recentes? Este é o tema desta edição de #FuturoPresente. Confira!
O início da escrita

O início da escrita, há cerca de 5.500 anos na Suméria (império situado no sul do atual Iraque), coroou um período de milhares de anos de organização neurológica para a representação gráfica de símbolos. Apenas para se ter uma ideia, as pinturas rupestres mais antigas conhecidas datam do Paleolítico Superior, há cerca de 45 mil anos (como as de El Castillo, na Espanha, e Sulawesi, na Indonésia).

Já naquela época, nossos antepassados conectavam cérebro, olhos, mãos e ferramentas de escrita (dedos, pedras de riscar, gravetos, carvões, conchas, cânulas de soprar) para representar o mundo em que viviam e seu próprio mundo interior. Com os sistemas de escrita, porém, começava algo diferente.
Por um lado, estavam dadas as bases do que, no futuro, seria a pintura; por outro, as civilizações ganhavam sistemas de registro de informações altamente eficientes e que podiam ser ensinados. Esses sistemas permitiam o armazenamento e compartilhamento externo de informações. Com isso, o cérebro ganhou condições de se especializar e os processos educativos avançaram para um outro nível. E a humanidade deixou a Pré-História para ingressar na História!
Quando a caneta gerou o teclado
Uma coisa curiosa, aqui, é perceber que, ao longo do tempo, os sistemas de escrita permitiram o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, que, por sua vez, possibilitou o surgimento dos meios digitais. Ou seja: ao fim e ao cabo, a escrita tradicional e sua materialidade – ou seja, o escrever a carvão, pena, lápis ou caneta – acabaram gerando a escrita digital, que, agora, está sendo colocada em cheque em relação às suas vantagens ou desvantagens em termos de conhecimento! Esta ironia histórica nos leva a uma questão fundamental: o que perdemos ao abandonar milênios de relação íntima entre mão e escrita? E o que podemos voltar a ganhar?
As lições de uma antiga relação
Agora, imagine: o uso de “ferramentas de pegar” para desenhar e escrever se desenrolou ao longo de pelo menos 50 mil anos. E foi só há pouquíssimo tempo (cerca de 160 anos, quando surgiram as primeiras máquinas datilográficas), que ele acabou sendo parcialmente substituído pelo uso de “ferramentas de teclar” que unificaram ainda mais os registros escritos e deram muito mais velocidade ao processo.
Essa enorme diferença de tempo – 160 anos equivalem a apenas 0,3% de todo o nosso tempo de relação com as representações gráficas – indica que, por mais que o teclar nos “domine” hoje em dia, a relação mão-caneta-lápis possui uma importância muito grande, que vai além, mesmo, do próprio ato de escrita em si.
Efeitos do novo, lembranças do eterno
A pandemia da Covid-19 e a onda digital que ela gerou em todo o mundo – de alto impacto na educação – levaram neurocientistas e pesquisadores de educação a investigarem os efeitos da substituição da escrita tradicional à mão pela escrita digital teclada. E eles chegaram a algumas conclusões importantes, que vêm sendo complementadas por novos estudos.
Por exemplo: eles observaram que a prática da escrita com lápis e caneta fortalece a precisão na escrita das palavras, a construção da memória e o acesso a recordações; além disso, ela também facilita o reconhecimento e a compreensão de letras.

Faz sentido. Basta imaginar alguém teclando uma letra (um “f”, por exemplo) e, depois, grafando esta mesma letra em um papel. Quando comparamos o teclar ao escrever, percebemos que, neste segundo caso, há uma exigência muito maior em relação à motricidade fina; os movimentos são mais complexos e, necessariamente, mais cuidadosos para dar conta de “desenhar” a letra, um processo que envolve ao menos 40 músculos e circuitos neurais bem específicos. A coisa, porém, não para na complexidade da relação neuromecânica.
Uma orquestra cognitiva
Uma pesquisa recente envolvendo eletroencefalografia (EEG) realizada pelos neurocientistas Ruud Van der Weel e Audrey Van der Meer, da Universidade de Ciência e Tecnologia de Trondheim, Noruega, mostrou que escrever à mão e teclar palavras ativam o cérebro de formas diferentes.
Na escrita à mão, mais áreas do cérebro são ativadas, o que, segundo os pesquisadores, pode favorecer a aprendizagem geral. É como se escrever à mão, enfim, não fosse apenas escrever, mas reger um conjunto mais complexo de habilidades que são treinadas e fortalecidas – uma orquestra cognitiva!

A caneta e as ondas theta
Outra investigação EEG, realizada em 2020 pelos mesmos pesquisadores, mostrou algo especialmente interessante em tempos de “alta ansiedade” como os que vivemos: a escrita à mão também pode estar relacionada ao aparecimento de estados de relaxamento mental. Isso porque, em crianças e adultos, escrever com lápis ou caneta promove uma sincronização na faixa de frequência theta nas regiões parietais e centrais do cérebro. A frequência theta de ondas cerebrais (que variam entre 4 e 7,5 Hz) é a associada a estados mentais de relaxamento profundo, meditação, sonho REM, devaneio e intuição, e também podem ser encontradas durante o sono e no período de adormecimento. Ou seja, escrever à mão estimula não apenas o relaxamento, mas a criatividade!

A educação… de lápis na mão!
A educação, vale reforçar, nunca abandonou a escrita cursiva, e também está se colocando na vanguarda de seu processo de resgate. No Brasil, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) a indica como uma habilidade a ser adquirida nos primeiros anos do Ensino Fundamental, dentro do processo de alfabetização.
Outros sistemas educacionais, como os dos Estados Unidos (em vários Estados) e do Canadá, que haviam “trocado os lápis pelos teclados”, voltaram a considerar a escrita à mão relevante. Em muitos países da Europa – como Reino Unido, Espanha, Itália, Portugal e França –, ela nunca deixou os currículos. E, no Extremo Oriente, especialmente na China e no Japão, a caligrafia possui um status de arte que vai além de seu caráter comunicacional essencial.

Conclusão
Em um tempo de telas e de estresse digital, a redescoberta da escrita à mão e de seus efeitos cognitivos é uma notícia excepcional. Ela também abre espaço para novos conhecimentos sobre esse bem cultural tão antigo e importante, ao mesmo tempo em que nos convida a cultivar um olhar mais amplo sobre o mundo. Um mundo onde mãos, lápis, canetas e folhas de papel escrevem uma bela história!