#FuturoPresente: os pesquisadores estão conseguindo ler os papiros de Herculano

Sítio arqueológico de Herculano. Fonte: Wikimedia Commons.

Desde que começaram a ser descobertos, no século XVIII, os sítios arqueológicos das cidades romanas de Herculano e Pompeia (destruídas por uma erupção do Vesúvio no ano de 79 d.C.) revelaram uma quantidade extraordinária de informações. Em objetos, moedas, joias, alimentos, casas, templos, organização urbana e, certamente, nos restos mortais de muitas das vítimas.

Papiros, papiros!

Uma das fontes mais extraordinárias de informações são os cerca de 1.800 papiros descobertos até o momento na chamada “Vila dos Papiros”, em Herculano. Ao contrário do que aconteceu em Pompeia, atingida por um poderoso fluxo piroclástico (mistura de gases, cinzas e fragmentos de rocha que pode chegar a mil graus Celsius e a 700 km/h) que destruiu praticamente todos os materiais orgânicos, Herculano recebeu uma onda de lama vulcânica mais densa. Um material muito quente, que “assou” e queimou tudo o que encontrou pela frente, mas sem dispersar os restos. Com isso, os papiros do que era uma biblioteca privada – pertencente, provavelmente, a Lúcio Calpúrnio Pisão Cesonino, sogro de Júlio César e patrono das artes e da filosofia – acabaram preservados. Devidamente enrolados, como eram conservados os papiros, mas terrivelmente carbonizados e muito, muito frágeis.

O Brasil também tem participação nesse desafio: pesquisadores brasileiros integram uma das equipes que competem para decifrar os manuscritos de Herculano.

Um dos raríssimos “papiros carbonizados” de Herculano. Fonte: Vesuvius Challenge.

O desafio da leitura

Os textos, porém, ainda estavam ali – provavelmente, de obras clássicas conhecidas e até desconhecidas, verdadeiros tesouros da Antiguidade ocidental. Mas, como acessá-los? Afinal, é simplesmente impossível desenrolá-los fisicamente – eles virariam pó em questão de segundos! Desde 1755, quando os primeiros foram descobertos, alguns, de fato, foram abertos fisicamente – e acabaram destruídos…

Esse é o tipo de desafio que inspira cientistas, inclusive pelos resultados que pode gerar para além da decifração dos próprios papiros. A partir disso – mas nascendo de pesquisas anteriores –, em 2023 foi lançado o projeto “Vesuvius Challenge” (“Desafio do Vesúvio”), que oferece um prêmio de US$ 1 milhão para cientistas que conseguirem extrair os textos dos livros usando tecnologias digitais – de aprendizagem de máquina, visão computacional e inteligência artificial.

E surgem as primeiras letras… Fonte: Vesuvius Challenge.

A primeira grande descoberta: o papiro de En-Gedi

A história do “Vesuvius Challenge” começou no início do século, quando o professor Brent Seales, da Universidade de Kentucky (EUA), começou a investigar caminhos para a decifração não invasiva de antigos documentos carbonizados. Em 2015, ele e sua equipe desenvolveram um método para acessar um antigo documento, o Papiro de En-Gedi Levítico (EGLev), descoberto em 1970 na antiga sinagoga de Ein Gedi, em Israel.

A partir de tomografia de raios-x síncrotron e ferramentas de aprendizagem de máquina, o documento – que havia sido queimado em um incêndio ocorrido por volta do ano 600 d.C. – foi lido. E revelou uma das mais antigas cópias existentes do Levítico, livro do Pentateuco e do Velho Testamento da Bíblia.

Em 2022, dois empresários, Nat Friedman e Daniel Gross, decidiram financiar o projeto concedendo prêmios aos “quebradores de papiros queimados”. E começou o desafio de ler os papiros de Herculano.

Qual é o desafio?

Os participantes – equipes e pesquisadores de todo o mundo, inclusive do Brasil – recebem tomografias dos papiros e trabalham para “desenrolá-los” virtualmente, detectando, com uso de ferramentas de IA, os padrões sutis que indicam a presença de tinta dentro das camadas de carvão. Isso, vale ressaltar, é algo muito complexo!

Até o momento, usando esses recursos, já foi possível decifrar o equivalente a 5% de um único papiro. O que parece pouco, mas, na verdade, é uma verdadeira arrancada rumo à decifração completa de muitos papiros. Isso porque os recursos digitais utilizados – além, é claro, da expertise adquirida pelos pesquisadores – têm a capacidade de aprender com a própria experiência, detectando padrões, eliminando erros conhecidos e chegando a resultados de forma cada vez mais rápida.

Quem são os vencedores até agora?

No final de 2023, foram premiados os primeiros vencedores – do “Vesuvius Challenge 2023 Grand Prize” –, que conseguiram decifrar algumas passagens completas de um dos pergaminhos. A equipe vencedora, que recebeu US$ 700 mil, é formada pelos pesquisadores Youssef Nader (Alemanha), Luke Farritor (EUA) e Julian Schillinger (Suíça). As outras três equipes participantes – uma delas, do Brasil – alcançaram a segunda colocação e receberam US$ 50 mil cada.

No caso dos pesquisadores brasileiros – que seguem na corrida pela decifração –, a equipe é formada pelo professor Odemir Martinez Bruno (IFSC/USP), Elian Rafael Dal Prá (mestrando em Física Computacional no IFSC/USP), Leonardo Scabini (pós-doutorando no IFSC/USP), Sean Johnson (administrador de sistemas), Raí Fernando Dal Prá (graduando de Ciências de Computação no ICMC/USP), João Vitor Brentigani Torezan (graduando de Física no IFSC/USP), Daniel Baldin Franceschini (mestrando em Engenharia Química no GIMSCOP/UFRGS), Bruno Pereira Kellm (graduando de Enfermagem na UNOPAR) e Marcelo Soccol Gris (empreendedor). Três dos participantes – Odemir Bruno, Elian Rafael Dal Prá e Leonardo Scabini – pertencem ao Grupo de Computação Científica do IFSC/USP.

Em seu trabalho, a equipe brasileira usou os dados de scanner do papiro obtidos por tomografia feita com um acelerador de partículas. O “rolo digital” foi inicialmente desenrolado e, em seguida, os pesquisadores passaram a buscar sinais de tinta no plano digital resultante. Esses sinais – chamados de “crackles”, pequenos padrões de rachaduras que indicam a presença de tinta – formam letras que, por sua vez, formam palavras e frases. E voilà!

E o futuro?

O “Vesuvius Challenge” continua a todo vapor, instigando equipes e, principalmente, compartilhando os resultados. Essa construção conjunta do conhecimento, somada ao acúmulo de aprendizados pelas próprias ferramentas digitais, certamente vai acelerar a decifração. Com resultados que não olham apenas para o passado, mas que abrem portas para muitas áreas, da medicina à exploração espacial.

E isso é… Futuro Presente! E ele começa na escola!

Para saber mais

Vesuvius Challenge – site oficial do projeto

Portal USP São Carlos – Grupo do IFSC/USP conquista 2º lugar no “Vesuvius Challenge 2023 Grand Prize”

Deutsche Welle – IA ajuda a decifrar “papiro de Herculano” de 2.000 anos

Pompeia – site oficial do sítio arqueológico