Rodrigo Wolff Apolloni, especial para a Editora Opet
Na história da tecnologia, 2023 provavelmente ficará marcado como “o ano em que fizemos contato” com a inteligência artificial (IA). As reflexões e investigações em IA, é certo, são mais antigas. Elas ganharam força nas últimas décadas e ainda mais nos últimos 15 anos, com usos em campos que vão da inteligência bancária à engenharia de materiais, passando pela publicidade e pelo arriscado campo das ciências militares.
No entanto, foi apenas em 2023 que, graças a ferramentas como o Chat GPT (e, um pouco antes, em 2021, com o DALL-E, programa de IA que cria imagens a partir de descrições em texto), “máquinas que pensam e respondem como pessoas” chegaram às mídias e ao grande público. E entraram em cena “causando”: espanto, encantamento, dúvidas e receios. Inclusive – e particularmente – no campo da educação.
Na segunda parte da nossa série especial sobre o Chat GPT e mecanismos semelhantes, buscamos entender os efeitos da IA sobre a educação, com foco no papel dos usuários – professores e estudantes – em relação aos melhores usos das ferramentas. A boa notícia é: sim, elas vieram para ficar – sabendo usá-las, os resultados são inspiradores. Confira!
🤖💡 Máquinas que pensam
Heitor Murilo Gomes é doutor em Informática e professor assistente em Inteligência Artificial na Victoria University of Wellington, na Nova Zelândia. Desde a graduação, ele pensa em “máquinas que pensam”. Ou melhor, em algoritmos que permitam às máquinas chegar mais perto do que concebemos como “pensamento” ou “inteligência artificial”.
Em 2023, além de prosseguir em suas pesquisas sobre “aprendizagem de máquina contínua” (de forma sintética, modelos de algoritmos que possibilitam aos computadores aprender coisas novas, sem esquecer o que já foi aprendido), ele se viu às voltas com uma questão essencial: como usar o Chat GPT com os estudantes?
🔴🟡🟢Um sistema de cores
Heitor conta que, em sua instituição e em outras universidades neozelandesas, o primeiro semestre do ano corrente começou com um “pânico generalizado” em relação à ferramenta. A perspectiva nas semanas anteriores ao início do semestre, conta, era a de que os professores indicassem o nível de utilização aceitável pelos estudantes logo no primeiro dia de aula usando uma escala de cores.
Vermelho, para as disciplinas em que o uso é terminantemente proibido (exigindo 100% de inteligência humana nas pesquisas e na produção de textos); amarelo, para usos autorizados previamente determinados, e verde, para o uso livre, com a condição de que os estudantes trabalhassem de forma crítica com os conteúdos gerados (analisando, por exemplo, a construção e o teor das respostas fornecidas pela máquina).
⚖️ Questão ética
Essa primeira aproximação “normativa” mostra o grau de preocupação docente em relação ao novo recurso. Mostra, também, que a primeira luz sobre o tema se relaciona ao aspecto ético da utilização: como fazer com que os alunos não “deleguem o aprendizado” ao computador, deixando de aprender e de pensar criticamente?
“Como atuo em uma universidade, não sei exatamente como as escolas do Ensino Fundamental estão lidando com a questão. Mas, imagino que proibir o uso é impossível. A ferramenta, afinal, está disponível”, observa Heitor.
Proibições, de fato, não costumam funcionar tão bem em relação a novidades tecnológicas. E contramedidas comuns, como o uso de ferramentas de detecção de plágio, tampouco. Elas, que, curiosamente, também utilizam recursos de IA, são frágeis e podem gerar falsas detecções.
Assim, resta um caminho aos usuários da educação: conhecer a ferramenta, descobrir suas virtudes e carências. E, a partir daí, trabalhar em um “sistema de tutoria” baseado na soma entre a inteligência humana e a inteligência artificial – com predominância da primeira, na forma de planejamento e visão crítica.
O Chat GPT, enfim, é uma ferramenta poderosa, mas que só alcança seu potencial educacional quando conduzida por um guia experimentado – o professor, que é quem deve perceber e definir seus usos e as formas de interação mais proveitosas no processo de ensino-aprendizagem.
📚 No tempo da enciclopédia…
Para a gerente pedagógica da Editora Opet, Cliciane Élen Augusto, a celeuma envolvendo a chegada do Chat-GPT não é muito diferente das que envolveram outras tecnologias associadas à pesquisa e à sua popularização. Nos últimos trinta anos, por exemplo, as pesquisas escolares trocaram a enciclopédia (até então vista como a fonte “definitiva” de consulta) pela internet e pelos motores de busca. Uma tecnologia disruptiva chegou, gerou preocupação, foi conhecida, ganhou espaço e acabou internalizada pela sociedade.
“Com o Chat-GPT, eu imagino que tenhamos um processo semelhante. E vejo a ferramenta como uma oportunidade fantástica para a educação, com um potencial enorme de melhorar o processo de ensino pelos professores e a experiência de aprendizagem dos estudantes. Não é preciso ter medo, mas conhecer”, assinala Cliciane.
👍 Algumas vantagens
Ainda que o Chat GPT seja bom em fornecer respostas textuais rápidas e convincentes – característica de seu formato conversacional, ou seja, de mimese da comunicação humana –, seu melhor uso, para efeitos educacionais, não está na delegação de perguntas. Perguntar, aliás, é fácil, e é sedutoramente cômodo receber uma resposta pronta – ainda que, como vamos ver, nem sempre ela seja a mais precisa.
Na verdade, o usuário pode e deve pensar no Chat GPT como um “assistente de compreensão”, uma ferramenta capaz de oferecer outras perspectivas de análise ou pesquisa. “Ferramentas como essa são muito boas em sumarizar textos, ou seja, em sintetizá-los. Também são boas para reescrever textos, de modo a tornar sua compreensão mais fácil”, aponta Heitor.
O que, no caso de estudantes de nível superior que estão chegando a áreas recheadas de termos técnicos, pode ser interessante; e o mesmo vale para estudantes que estão se preparando, por exemplo, para o ENEM e os vestibulares, ou que estão estudando um texto mais difícil.
Para os professores, a ferramenta também pode ser utilizada na preparação das aulas, para analisar e reescrever questões complexas tornando-as mais acessíveis ou, então, para gerar questões subsidiárias derivadas da pergunta-chave. Ou, ainda, em um processo dialógico que nasce dessa mesma pergunta. “Pode-se continuar o diálogo com a ferramenta, problematizando a resposta, questionando e ampliando a discussão. Fazendo, enfim, uma personalização desse aprendizado – que é um grande ou o principal diferencial da IA”, avalia Cliciane.
A mesma lógica de “diálogo com a máquina” também funciona para os planejamentos. O professor pode preparar seu planejamento, expô-lo ao Chat-GPT e pedir planejamentos alternativos, que complementem ou coloquem o documento original em perspectiva. Em síntese: o pensamento humano “desafia” o pensamento artificial, que responde oferecendo novas perspectivas.
Heitor destaca ainda o papel do Chat-GPT em traduções e, também, como assistente de criatividade em histórias. Por exemplo: peça à ferramenta que escreva o parágrafo de abertura de uma história em que o artista catalão Salvador Dalí está passeando pela praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Nós fizemos isso e obtivemos a seguinte resposta:
“Salvador Dalí estava passeando pelas estreitas e coloridas ruas de Ipanema, com seu chapéu ladeado cintilando ao sol da tarde. O cenário era abastecido por flores coloridas e praias deslumbrantes, que contrastavam com uma ligeira brisa salgada que soprava do oceano. Ele seguiu para o calçadão onde os moradores locais e turistas de todo o mundo passavam o tempo. Sua curiosidade despertou, pois podia sentir que aquele momento e lugar…”
Não podemos afirmar que seja um texto genial, mas funciona perfeitamente como ponto de partida para uma história – e ainda pode ser modificado pelo autor humano.
⚠️ Questão de intencionalidade
Todos os usos acima indicados partem de um pressuposto essencial: a intencionalidade. Para Cliciane, essa é a palavra-chave em relação aos usos vantajosos do Chat-GPT e de ferramentas similares na educação. O termo, aliás, está na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para indicar intervenções pedagógicas planejadas e implementadas com vistas às aprendizagens e ao desenvolvimento integral.
Não basta, enfim, pensar no Chat-GPT como um elemento “em si”, mas, sim, como parte de um ferramental educacional que pode entregar bons resultados quando utilizado com conhecimento, planejamento e em uma ação que envolva todos o docente e os estudantes.
👎 Mas, e as desvantagens?
Quem já usou o Chat-GPT de forma mais intensa sabe que, muitas vezes, as respostas geradas não são, assim, uma maravilha em termos de precisão. O que acontece, em princípio, porque o sistema não é perfeito – ele está em desenvolvimento – e porque utiliza bases de dados que também contêm erros, distorções ou “buracos” de informação. A tecnologia não é, enfim, definitiva.
Experimente, por exemplo, colocar questões sobre um tema que você domina e avalie o grau de acuidade das respostas. Os textos vêm bem escritos – o que facilita o convencimento –, mas nem sempre trazem informações precisas ou verdadeiras.
E é aí que o problema acontece. “Há um risco muito grande de que uma pessoa sem o devido conhecimento, sem uma leitura prévia do tema pesquisado, use o Chat-GPT para chegar a uma conclusão definitiva”, avalia Heitor. “O que é grave porque, em especial no campo da educação, desaprender é muito mais difícil do que aprender”, pondera.
Heitor também observa que as máquinas são treinadas e alimentadas por seres humanos, o que pode contaminá-las com visões de mundo imprecisas e até com elementos ideológicos perigosos. As respostas, muitas vezes, nascem de uma soma entre dados cientificamente precisos e imprecisos, o que pode enganar usuários não especialistas.
E como resolver esse problema? Fazendo aflorar no usuário uma característica humana básica e preciosa – a desconfiança. “O estudante não precisa entender os mecanismos por trás da IA, mas deve desconfiar sempre das respostas”, decreta o pesquisador.
Outro aspecto importante e que deve ser levado em conta. O Chat-GPT costuma ceder a réplicas negativas, moldando-se à opinião de quem pergunta. “Como ele tende a agir de forma positiva em relação ao usuário, costuma ceder quando é ‘admoestado’. O que é perigoso porque pode produzir um viés de confirmação de ideias enviesadas apresentadas de forma insistente pelo usuário”, explica Heitor.
Há, também, a questão mais visível do plágio. Não apenas pela “malandragem” da delegação de uma tarefa, mas pelo fato de que, com o Chat-GPT, todo o trabalho é delegado à IA. “No plágio ‘clássico’, em que o aluno copia partes ou o todo do trabalho de outros autores, ainda existe uma chance mínima de ele aprender algo, no próprio processo. Usando o Chat-GPT, nem isso acontece”, observa Heitor. Aqui, uma solução possível passaria pela interpretação dos textos: o aluno apresentou o trabalho? Então, peça que ele fale mais sobre o tema!
⚖️ Os recursos e a lei
Cliciane lembra que, no Brasil, a discussão sobre as novas tecnologias digitais é contemplada pela legislação educacional, em especial a partir da homologação da chamada “BNCC da Computação” – o Parecer CNE/CEB 2/2022 -, em outubro do ano passado. O documento, que complementa a BNCC, define as normas relativas à computação na Educação Básica. Ele indica que cabe aos Estados, municípios e Distrito Federal iniciar a implementação da diretriz ao longo deste ano.
“A lei já garante que esses recursos, inclusive os relacionados à IA, cheguem às escolas de maneira intencional e voltada ao pensamento computacional, em relação com os demais componentes curriculares”, observa.
Nesse contexto, a Educação Midiática, que pode ser definida como o “conjunto de habilidades para acessar, analisar, criar e participar de maneira crítica do ambiente informacional e midiático em todos os seus formatos – dos impressos aos digitais” (no conceito do Programa Educamídia), assume um papel fundamental.
“A Educação Midiática deve perpassar o uso correto e ético dessa ferramenta”, indica Cliciane. “Por meio dela, podemos perceber o Chat-GPT como uma ferramenta – mais uma, entre várias – que não funciona de forma isolada. Um recurso que pode e deve ser utilizado em uma perspectiva multidisciplinar.”
🔮 Futuro
O potencial de encantamento pelo Chat-GPT é real. Seu poder, idem. Diante disso, vem a pergunta: podemos esperar que, no futuro, ele – ou ferramentas semelhantes, como o Bard, do Google – substitua sistemas de buscas consagrados como o Google? A pergunta é genérica, mas vale muito para a educação: afinal, boa parte das atuais pesquisas escolares nasce nos motores de busca.
Heitor Murilo Gomes acredita que não. Em especial, porque nem todas as perguntas pedem respostas como as que o Chat-GPT oferece. “Se eu quero encontrar um restaurante chinês perto da minha casa, por exemplo, não vou querer uma resposta extensa ou que traga a história da culinária chinesa, mas uma indicação e um mapa. Um link, enfim”, observa.
Ele acredita que o futuro passa por uma fusão entre os recursos de IA conversacional e os dos atuais mecanismos de busca. “Se o mecanismo de IA permitir a inclusão de links para além da resposta textual, há uma grande possibilidade de ele substituir as buscas tradicionais. Aliás, já há informações de que o Bing, da Microsoft, vai fazer isso. E também o Baidu, principal motor de busca chinês, e o Google.”
E em relação a outras novidades, o professor da Universidade de Wellington acredita que estamos vivendo o início de um ciclo de investimentos. “Há muitas empresas querendo investir e há muitos pesquisadores querendo receber esses investimentos. Vão surgir coisas novas, com certeza. Até onde sei, no caso do Chat-GPT estamos perto de um limite de possibilidades, mas nada impede que outras técnicas possam fortalecê-lo. E nada impede, também, que uma nova tecnologia venha a substituir o que temos hoje em termos de IA.”