Do “bilete” ao Peixe de Abril: história e significados do Dia da Mentira

O famoso “bilete” do menino Gabriel Lucca, que acabou virando meme. Fonte: Wikipedia.

“É verdade esse bilete [sic]”. Muitos brasileiros conhecem e até utilizam essa frase de vez em quando. Ela foi criada pelo menino Gabriel Lucca, que, aos cinco anos, em 2018, tentou enganar a mãe escrevendo um bilhete em que se passava pela própria professora. A mensagem dizia o seguinte – “Senhores Paes [sic]: amanhã não vai ter aula porque pode ser feriado. Assinado: Tia Paulinha” –, sendo complementada com a frase que abre este parágrafo. A história, que aconteceu na cidade paulista de Bocaina, acabou se transformando em um meme de enorme repercussão para indicar, de forma engraçada, situações em que a mentira contada é tão evidente – ou tão inocente –, que acaba despertando o riso ou a ironia.

Uma mentirinha assim, ao mesmo tempo tão engenhosa e ingênua – tão simpática, na verdade – não deixa de ser um símbolo de algo muito presente em todas as sociedades do mundo. A mentira!

Nem todas as mentiras, evidentemente, são tão inofensivas ou engraçadas quanto a contada por Gabriel. Muitas são perigosas e têm consequências sérias – como, por exemplo, as Fake News, que devem ser combatidas com conhecimento e educação midiática; outras, ainda, destroem a reputação de quem é o objeto da história falsa; e há, também, aquelas associadas ao bullying. Um caso sério!

O Dia da Mentira

A relação é tão profunda que uma parte do mundo chegou até mesmo a criar e cultivar um dia dedicado à mentira, o 1º de abril. Vale observar que não é um dia de mentiras maldosas ou perigosas, mas, sim, de brincadeiras com amigos (sem maldade ou humilhação), algo que traz um pouco da ideia de inversão que inspira o carnaval.

Mas, você sabe como começou essa história? É o que vamos descobrir. E pode confiar “que é verdade este bilhete”!

Mudou o Calendário… mentira!

O dia é da Mentira, mas, em algumas regiões do mundo, também é chamado de Dia dos Tolos, dos Bobos ou dos Enganos, e, também, de “Peixe de Abril” (na Itália e na França – em breve, vamos descobrir por quê). E, ao contrário do que poderíamos pensar vivendo em um mundo repleto de memes, truques e tentativas de engano, ele não é recente. Não, mesmo! Quem estuda o tema afirma que a tradição de um “Dia da Mentira” tem mais de 500 anos – ou seja, é quase tão antiga quanto o Brasil!

“Buon Pesce D’Aprile!” (“Feliz Peixe de Abril!”). O Dia da Mentira é uma tradição que nasceu na Europa do século XVI. Fonte: Getty Images.

Mas, como começou?

A culpa seria da Igreja, de um calendário e de um rei francês. E de um bando de gente que começou a ridicularizar e a pregar peças em seus semelhantes!

Gregório XIII, o “pai do novo calendário”. Fonte: Wikipedia.

Vamos explicar: entre 1545 e 1563, a Igreja Católica realizou o Concílio de Trento, na Itália, em que discutiu várias medidas relacionadas à religião. Uma delas foi a substituição do calendário juliano (criado em Roma no século I) pelo calendário gregoriano, mais preciso, que corrigia uma distorção temporal crescente que influenciava o calendário litúrgico, ou seja, das celebrações da Igreja. A substituição foi feita alguns anos mais tarde, em 1582, pelo papa Gregório XIII (que também deu nome ao calendário). Vale observar que, no chamado Cristianismo Ortodoxo, adotado em países como a Rússia, a Ucrânia e a Armênia, ainda se utiliza o calendário juliano, com ou sem ajustes. 

E cumpra-se!

Como, na época, as decisões da Igreja tinham enorme poder sobre as sociedades, os reis começaram a aplicar a regra. Uma das mudanças do novo calendário estabelecia o início do ano no dia 1º de janeiro. Até então, a data de início do ano, no calendário juliano, variava de região para região – algumas partes da Europa o celebravam no dia 1º de março, outras no dia 25 do mesmo mês; com as distorções do próprio calendário juliano, esta última data chegava perto do 1º de abril.

Na França, o ajuste foi decretado pelo rei Henrique III no finalzinho de 1582. Resultado: uma parte da população aderiu à novidade e a outra se recusou a celebrar o Réveillon na data nova, preferindo manter… o 1º de abril!

Rapidinho, os resistentes, uma minoria, passaram a ser ridicularizados pelos demais. E acabavam até convidados para festas de ano novo – em 1º de abril, é claro – que, na verdade, eram uma grande enganação, com pregação de peças, brincadeiras e outras “esculhambações”. Pronto: nascia o Dia da Mentira!  

Uma piada bem arriscada

A bagunça virou tradição e ganhou todo o mundo ocidental, inclusive o Brasil colonial.

Foi apenas no início do Brasil Império – mais exatamente, em 1828 –, porém, que a data ganhou uma “certidão de nascimento” em terras tupiniquins. Naquele ano, no dia 1º de abril, a primeira edição do jornal satírico mineiro “A Mentira” (olhe só o título…) trazia como manchete, nada mais, nada menos, do que a morte de Dom Pedro I!

Foi, evidentemente, uma sensação, até porque ninguém sabia bem qual era a “cara”, a linha editorial do jornal. Muita gente acreditou, muita gente riu e muita gente ficou furiosa!

Brincadeiras e jornais

No Dia da Mentira de 1980, a rede britânica BBC anunciou que o Big Ben seria “atualizado” para um formato digital. Fonte: Wikipedia.

Não se sabe exatamente se a brincadeira trouxe consequências para os editores do jornal – na época, D. Pedro se via às voltas com questões muito sérias como a independência da antiga província Cisplatina (atual Uruguai) –, mas o fato é que, a partir de então, a data acabou consagrada para a pregação de peças.

No próprio campo jornalístico, por exemplo, brincadeiras do tipo (com envio de notícias falsas para as redações) eram muito comuns até recentemente. E levaram os jornais a reforçar seus mecanismos de checagem de informações! Em alguns países – como o Reino Unido -, os jornais pregavam peças com notícias falsas em 1º de abril.

E como os países celebram o Dia da Mentira hoje?

Em um mundo ultraconectado e altamente interconectado, é possível afirmar que o Dia da Mentira segue mais ou menos um mesmo roteiro, com algumas diferenças regionais. E é possível, inclusive, que esteja perdendo força. Assim como ocorria (e ocorre) no Brasil, em países como os Estados Unidos e o Reino Unido as redações de jornal são alvo preferencial dos brincalhões de 1º de abril, que enviam notícias absurdas, releases de brincadeira e outras “pegadinhas”, algumas vezes bem elaboradas.

A ideia é enganar os editores e fazer com que eles publiquem as notícias como verdadeiras. Com o fortalecimento da verificação de fatos (fact checking) e a migração dos jornais para o mundo digital (que permite correções rápidas em caso de engano), porém, a tendência é de que o sucesso dessas “publicações desastradas” seja cada vez menor. Até mesmo porque, em um mundo assolado por Fake News e desinformação, elas já não têm tanta graça!

“Fact” (fato) ou “Fake” (falso): uma das grandes questões da mídia e da sociedade no século XXI. Fonte: Getty Images.

E o “Peixe de Abril”?

Alguns parágrafos acima, falamos que, na Itália e na França, o Dia da Mentira também é chamado de “Peixe de Abril”. E esse nome só existe porque, nesses países, é tradição colar um peixe de papel nas costas das “vítimas” da festa sem que elas se deem conta. Nada, aliás, que desconheçamos: brincadeiras do tipo, especialmente com bilhetes pregados nas costas, já foram (e ainda são) relativamente comuns entre nós.

Mas elas também perderam força, em especial por conta de uma maior consciência coletiva a respeito da humilhação e do bullying – um problema gravíssimo, em especial nas escolas, que causa sofrimento e deve ser combatido.

Conclusão: o Dia da Mentira tem história… e é bom conhecê-la!

Ao conhecer um pouco mais sobre a origem do Dia da Mentira, descobrimos coisas que abrem possibilidades de reflexão. Como, por exemplo, os fatores relacionados à construção das tradições. Como surgem as datas festivas, em especial as populares? Quem diria, por exemplo, que uma mudança no calendário – com pessoas contra e a favor – acabaria gerando uma festa popular?

Vimos, também, o papel que a Igreja Católica desempenhou na vida das sociedades europeias por séculos. Um decreto papal, validado por vários reis, mudou a data de início do ano!

Por fim, pudemos perceber a resposta das sociedades a mudanças importantes em seu dia a dia. No caso do Dia da Mentira, de contestação, assimilação e construção de significado – uma festa que sobrevive quase 500 anos depois de uma mudança decretada por um papa!

Por fim – e o mais importante -, o Dia da Mentira também pode ser uma oportunidade de reflexão e ação em relação a temas fundamentais da nossa época: as Fake News, a educação midiática, a checagem de fatos e, especialmente, o respeito às pessoas e à dignidade humana. Refletir conhecendo, pesquisando e dialogando. E agir combatendo o bullying com inteligência, seriedade, conhecimento e empatia.